[J]air, jardineiro, 54, encerrado na estufa: uma sala que possui paredes de vidro e o fundo pintado de uma cor escura, como o preto, onde a luz em  dia de sol, consegue facilmente penetrar nas paredes transparentes de vidro e uma parcela consegue chegar até o chão escuro, onde a energia radiante é absorvida, resultando num aumento de temperatura no chão. Este então passa a emitir ondas de calor, as quais o vidro opaco, não deixa atravessar. Assim, a estufa mantém o ambiente interno mais quente que o externo, possibilitando o cultivo de plantas e hortaliças. Jair Não sabe dada disso.Aprendeu a construir estufas e só.  No momento corta os caules das flores velhas.Prepara arranjos de Natal. Não tem família mas mandará as flores ao fregueses mais assíduos. Seus dedos deslizam pelas pétalas como se  acariciasse a amante. Porém, destrói sem piedade as defeituosas, arranca-as, e supersticioso, acha que ouve gritos de dor.

A máquina emperrada, uma espécie de serra improvisada, ronrona preguiçosa dando a Jair  o direito de viajar  e divagar por mundos paralelos. Faz um pedido a um deus distante: deseja ser feliz.

De repente, saindo do nada, vê o acasalamento de duas lagartas gigantes sobre imensas folhas verdes.Tenta alcançar uma delas, jamais suspeitando ser a estranha visão, pois o fato não pertence ao conceito do seu imaginário, uma imagem de luz: um holograma — holo =todo, garama = informação e jamais poderia decodificar aquilo como uma amplitude de onda.

Arcano, a imagem se vai: dissolve-se misteriosamente no espaço. Jair acha que o seu pedido está sendo satisfeito.Algum deus distante e desconhecido está manobrando para a sua felicidade. 

Quase que de súbito, a serra teimosa, desembesta numa velocidade absurda, e Jair inerte, vê sua mão sendo amputada pouco a pouco.Varrido pela dor,  desmaia. A mão pendente, presa por uma única pele, destaca-se e corre a esconder-se no cesto de pétalas velhas.A estufa transforma-se  numa câmara de fumaça.

Jair acorda no hospital da pequena cidade — tão deficiente quanto a serra que o aleijara — já medicado e com o antebraço enfaixado com espessas ataduras. Só ouve a última frase das recomendações do médico.

— Foi uma pena não terem achado sua mão.Poderíamos ter feito um enxerto.Se conseguirmos um cadáver em até 72 horas, poderemos tentar o implante.

Já em  casa as palavras do médico martelam sua cabeça.Procura a mão perdida na estufa em cinzas. Encontra-a no cesto, carbonizada. Tenta limpá-la,  e a coloca no soro fisiológico. Com esperanças de que se regenere. A serra criminosa  permanece incólume.

O pensamento de encontrar a mão perdida, torna-se idéia fixa.Caso a resolver em menos de sessenta e oito horas.Quatro já se foram. Terá que achar um corpo igual ao seu para um ajuste perfeito. Não necessariamente um cadáver. Franzino, baixo, magro.  Sem a  mão direita,  o que lhe resta além da feiúra e da magreza? .Pensa que mesmo a mão de uma criança se adaptará ao seu braço tão fino. 

Pesadelos iniciam-se. Dedos carbonizados arrancam-lhe os cabelos,  furam-lhe os olhos,  invadem sua garganta puxam-lhe as amídalas. A cada noite, a invasão é maior! Penetram os labirintos de seu corpo, invadem os orifícios, examinam seus ouvidos, entram em suas narinas, asfixiando-o, retirando todo o seu oxigênio.Tenta defender-se, luta com o braço aleijado , amanhece sangrando, os lençóis encharcados de vermelho úmido. Passa a não dormir.Amanhece na janela de sua edícula escondida, um ponto ínfimo na floresta abandonada. As horas se esvaem.Só lhe restam quarenta. Então vê a sombra que ultrapassa a moldura brilhante, o grande portal da outra dimensão. Jair nem imagina que haja mundos paralelos. O seu mundo resume-se naquela floresta e nas suas flores.A sombra pára sobre  a ramagem espessa e  se materializa na adolescente franzina de membros compridos, envoltos por uma aura colorida. O que não causa espanto a Jair, pois dos ignorantes não será o reino dos céus? É puro e certo que ele jamais ouvira ou ouvirá falar de Thomas Young, ou Dennis Gabo, ou ainda James Clerck Maxwell. Jamais saberá que aquela imagem está viajando num vácuo, a cento e oitenta e seis milhas por segundo.E  vindo de um mundo paralelo, ultrapassando o portal do tempo.Aceita a situação  como uma dádiva divina ou satânica. Pula a janela e parte em disparada naquela direção.Mil demônios ordenam que ele arranque a mão daquele corpo longilíneo. Mais mil lhe insinuam o deleite de ter a criatura em seus braços. Jamais tivera uma mulher.Sempre se contentara com as gatas e os buracos das cercas.

Alcança-a . A aura que a envolve desaparece.

— Que alívio! O Supremo Ser me enviou você, disse ela, peito arfando de cansaço.Estou perdida.Não sei como vim parar aqui.

Ele não responde.Exalta-se interiormente com excitada emoção.Fixa o olhar nas mãos da garota.Unhas pretas.Aquilo é um belo presente de Natal.

—Às vezes nossos desejos são atendidos.Por Deus ou pelo Cão.Vamos até a minha casa, lá você poderá descansar um pouco.

Ela consente.Parece curiosa sobre o lugar.

No cômodo acanhado, ao som da fraca lamparina, percebe o ferimento.

— Feriu-se?

— É.Sou jardineiro.Perdi minha mão na serra de cortar caules.

— De onde vim teria imediatamente se recuperado. Já nos regeneramos automaticamente.

— E onde é isso?

Ela se cala.Não reconhece aquele  ambiente pleno de verde. E aquele ser excêntrico.

O aroma do chá de melissa fumegante inunda o ambiente.

— Beba isso, é calmante.

— Essas ervas, já não as cultivamos.Qual é o efeito?

— Que isso, garota? O efeito dessa erva é apenas relaxante..Você está muito nervosa.

—Obrigada.Estou mesmo é confusa. Pode me dizer que tempo é esse?

Jair deixa a pergunta sem resposta.Ora, que tempo é esse...É o tempo em que perdi minha mão.

Porém, mal acaba de tomar o chá, a garota entra em torpor e adormece profundamente.

Ele tenta despi-la de suas roupas leves. Tenta tocar-lhe o empinado seio, quer brincar com seus mamilos rijos,examinar-lhe o sexo.Estranha a textura de sua pele,misturando-se com o tecido do lençol.A aura volta a circundá-la.Unhas pretas.

O prazer há tanto desejado não pode se concretizar.Supersticioso atribui o fato a um anjo de  proteção da garota. Quase desiste, mas os demônios não perdem a oportunidade de sussurrar em seus ouvidos:¨serre essa mão, rápido, não terá outra oportunidade¨.

Larga sua presa por instantes, e dirige-se à estufa.Lá está a serra maldita.Corre de volta. E se o chá perder o efeito? Afinal mexera demais com a garota, desperdiçara tempo, mal sabendo que há outros tempos diferentes dos contados na terra.Não é nem de longe, um iluminado.

Ela não está sobre a cama, embora suas roupas estejam caídas no chão.Vacila por instantes.Afinal não era um assassino.Não poderá assassiná-la para conseguir a mão decepada.Arrepende-se de ter perdido tempo. A tentação da carne o atrapalhara.Mas não desistirá.Afinal a garota é magra e fraca.Será fácil dominá-la.Não precisará matá-la.

  Desculpe, estudo o lugar.Fui até a floresta.

Nua e linda!

— De onde vim temos premonições e parece que esse chá ajudou.

A oportunidade!

— Posso fazer mais se quiser.Melissa é que não falta aqui.

— Preciso achar a saída.Meu companheiro deve estar à minha procura.Sempre descemos em dupla. Ele não deve ter encontrado o portal.

Companheiro! Portal? E a floresta por acaso tinha algum portal ?  Precisava agir rápido.

Você pode pegar as minhas roupas? Preciso de meu comunicador.

Não.Vai ter que esperar até a luz do dia. Você teve sorte de não ser atacada por algum animal.

Aproveita quando ela se abaixa para vestir a calcinha. O tronco atravessa a sua cabeça, termina o baque na parede, não se mancha  de  vermelho, de sangue, como ele esperava. a mancha é colorida e brilhante.Purpurina! Desacordada ela se materializa.Ao colocá-la sobre a cama, pressente  passos na ramagem.Precisa agir rapidamente. Liga a serra. Funciona, a bateria está carregada.Serra a mão sem dificuldade. Um pulso tão fino e sem sangue!

Coloca a mão no isopor  com soro fisiológico e corre ao hospital no caminhão mambembe. Nada o impedirá de chegar. Nova sombra aparece por entre duas árvores. Atravessa. Não ouve  o baque do impacto, não sente  a protuberância sobre as rodas.Porém, nada o impedem de continuar.Ainda vê  a sombra envolvida numa aura brilhante pelo espelho retrovisor.Continua pensando que é um milagre de dia de Natal.

Os médicos não perdem tempo. A mesa operatória é preparada rapidamente. O único transplante de mão naquele hospital de segunda classe os deixará famosos. Será o reconhecimento.As luzes se apagam. Exceto a corrente que alimenta o laser a rubi..Será quase no escuro, sob a iluminação mortiça do gerador..O laser é potente o suficiente. O isopor está pronto, o material à mão.Não haverá erro.

A cirurgia é um sucesso, nenhuma rejeição. Em uma hora as ataduras serão retiradas.  A rádio local e o jornal da cidade estão presentes para registrar o fato. Chega o momento.

Ao levantar o lençol um grito de horror ecoa no quarto. Há dedos por todo o corpo do jardineiro.Remexem seu cérebro, enfiam-se pelas narinas, expõem todos os seus orifícios.

A mão implantada está descoberta.As ataduras foram arrancadas.E desintegra-se lentamente.

O forte estrondo desperta as pessoas do choque petrificante. O quarto ilumina-se feérico. A imagem holográfica do casal estranho projeta-se no quarto.Por instantes apenas. Abre-se um portal brilhante e ambos desaparecem através da parede. 

Os médicos saem da letargia e verificam surpresos que a mão carbonizada implantara-se com sucesso  no pulso do jardineiro.

 O  laser rubi ainda avermelha o orifício na parede branca.

 


© Nilza Amaral 2002.