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Trilogia
Inócua - 1
O Sopro do demônio
John
Dekowes
“
Diz uma antiga lenda que no final dos tempos, das profundezas do
universo, surgirá uma força mais poderosa que toda a natureza, e
envolverá todo o cosmo num vendaval terrível, e não sobrará sequer,
qualquer espécie de vida em toda a imensidão. Essa mesma lenda descreve
sobre a horrível tortura que acorrerá em todas as almas plangentes.
Alerta para a tremenda energia em forma eólica que sucumbirá com os
acólitos enteus, descrentes e famigerados hereges. E no término da
existência de toda a vida, dessa mesma energia se elevará o sopro
primevo da essência... e, o mundo não seria o mundo se não houvesse o
hálito da besta fera!”
Até ali, tudo parecia
fazer sentido. Não fosse a ponte de madeira derrubada, as manchas
cinzentas de sangue pisado misturado com a terra, nem as marcas
profundas do que eu supunha serem de pés, a natureza, em todo o seu
esplendor, eclodia numa tarde primaveril. Ou seria de outono? Já nem me
lembro mais... Desde que voltei daquela missão ao planeta Xython, a
minha vida mudou completamente. Mas eu tenho vida? Será que essa
energia que corre pelo meu corpo, eu posso chamar de força vital? Nas
minhas lembranças, as memórias se perderam num emaranhado de imagens, e
eu preciso me sentar para não cair. Fico zonzo só de pensar que já
respirei outro ar, aspirei outros ventos, e vivi dentro de outra vida.
O que me faz consciente disso tudo são as pegadas deixadas a minha
frente. Observando melhor, percebo que, o que eu acho que seja a minha
frente, é na verdade atrás! Não posso me confundir. As pegadas estão se
distanciando, se alongando, se dispersando, como se o ser espacejasse
mais as suas passadas.
Mas o que eu persigo?
A minha sombra de vez
em quando parece que se esconde de mim, outras vezes se afasta
disformemente, e se perde na distância. E quando olho para aos lados,
sinto uma brisa fria no meu rosto, apesar de todo o calor daquele sol
azulado. Em que planeta eu vivo? Que espécie de ser eu sou? Não estou
me referindo a minha condição de ser vivente, com estrutura
pluricarbonada banhada em dióxido de dríliox e ácidos nucléicos
derivados das proto células. Para isso tenho uma resposta. Falo do que
me invade a alma! Isso é que me deixa confuso, perturbado!
Antes de partir para
Xython, minhas reservas de energias viviam abaixo do limite crítico.
Raspava os protídeos e glucídeos acidulantes para sustentar apenas a
minha maquina metabólica funcionando, quase em suspensão anabólica.
Mas, vocês devem
estar imaginando porque estou falando tudo isso, sem me apresentar.
Iniciei a narrativa do final... ou foi do princípio? Bem não importa...
Sou Rhyell Sev’la, cidadão do Planeta Zygghte, localizado ao norte do
quadrante Y, perto do que comumente chamamos de Galáxia de Andryöen,
mas que vocês classificam como Via Láctea. Ficamos bem perto das
grandes rotas comerciais interplanetárias. A raça zygghteana é dividida
em duas castas: Infiltrante e Glóbulus. Já pertenci as duas. Como
Infiltrante, já experimentei outras vidas, outros corpos, objetos,
plantas; passei por experiências deveras inusitadas... E como Glóbulus,
senti o que é não possuir nenhuma essência, apenas uma vida abjeta, sem
nenhum significado, um desperdício!... Hoje, não sou nenhum nem outro.
Sou apenas um cidadão em busca de oportunidades!
Mas voltando aos
fatos; na verdade, para fazer parte desta missão – a qual não estava
qualificado – tive de fraudar certos documentos, acessar códigos
criptográficos moleculares, e inserir dados falsos nos CBGênicos. Bem,
mas agora percebo que não foram tão falsos assim. Depois de tudo
passado, me parece que fui induzido a agir daquela maneira. Contudo,
inegavelmente, o meu inconsciente é um prodígio em memórias atávicas!
Apesar de estar em completo estado de inanição, externamente a minha
forma alquímica simbiotizou-se satisfatoriamente, e me vi,
desempenhando com aptidão todas as funções que não estava preparado
para executar. Intuição? Instinto?
Antes da partida,
resolvi contar tudo sobre mim. De como havia forjado, manipulado,
alterado os códigos do computador biogênico... Devia me manter afastado
dos “Viajantes”, - os infiltrantes mais evoluídos -, por não possuir um
padrão de conhecimento tecnológico tão avançado quanto o deles, mas,
por mais que me mantivesse arredio, mais eles procuravam o meu contato.
Eles já sabiam! Desde
o princípio conheciam a verdade! E disseram que se alguém agia daquela
maneira, não podia estar fazendo aquilo por simples brincadeira.
Deveria existir uma razão muito forte! Bem, se existir algo mais forte
do que lutar pela sobrevivência, estou completamente equivocado... ou
eles.
A viagem ao planeta
Xython foi programada para ser muito tranqüi-la. Não tivemos nenhuma
distorção temporal de grandes proporções, exceto por alguns “Viajantes”
que foram literalmente sugados para dentro de outras dimensões. A nossa
missão consistia em ir buscar conhecimentos aleatórios, sem nenhuma
área específica, sem qualificar setores de pesquisa nem trazer espécies
de amostra. Eu era “expert” na arte da absorção! Invadir corpos,
tomar-lhes a forma, memórias, pensamentos, lembranças, fatos,
conhecimentos, suas vidas... Tudo o que a mente da criatura pudesse me
passar de informações. Nunca consegui atinar porque no universo existam
tantas raças com mentalidade tão caóticas!? Os subgrupos mutantes
aracnoreptilianos de terceira geração, conseguem preservar um nível de
inteligência abstrata, mas qualquer ser de uma categoria menos evoluída
como os Trijyll do Sistema Dygon - Galáxia Habro’x 15y38 ND -, também
conseguem - sob pressão -, desenvolver condições de inteligência
artificial bem superiores. Mas, o mais importante, é que em Xython,
vamos obter mais informações para complementar dados deixados por
“Viajantes temporais” há muitas eras.
Geralmente as missões
obedecem a uma regra rígida. Cada “Viajante” tem a sua rota, o seu
caminho, o seu destino estipulado. E chegado o momento, ele
simplesmente parte em forma de energia. Quando eu era “Infiltrante”
conheci vários mundos e, como “Glóbulus”, outras formas de vidas, até
ser levado para outro estágio experimental, e foi quando me tornei um
renegado. Mas não perdi todos os meus poderes. Quando era para eles
desaparecerem, passei a ser um cidadão em busca de oportunidades, e me
safei, saturando todos os meus canais de energia, ocasionando uma
espécie de bloqueio instantâneo. Apenas o tempo necessário e justo para
que todos me dessem como “concluído”, isto é, morto.
E, eis-me aqui,
agora, nesta nave hialossômica de poder infinito, aguardando o momento
da chegada à Xython. O mais emocionante desta viagem é sentir os raios
cósmicos atravessando o meu corpo, unir a minha essência a cada micro
partícula sideral desde universo, fundir a minha alma ao absoluto,
estabelecer um elo de presença e participar da imensidão do cosmo, e de
todos os eventos, fenômenos que ocorrem no espaço. Ficar em sintonia
com as energias que emanam do Tudo e do Todo. Essa emoção especial,
esse confronto derradeiro de harmonia com o Incriado é que me faz ser
como sou. Mas para participar dos eventos; mergulhar a fundo neste
oceano de energia, deve-se obedecer às leis cósmicas que regem todo o
Universo, e que nem sempre são constantes. Portanto, devemos sempre
estar preparados para as “surpresas”. E quando despertei do meu estado
de deslumbramento, toda a beleza do espaço sideral, havia sumido. Minha
essência estava sendo atraída para um planeta desconhecido. Olhei ao
redor, e percebi que os “Viajantes” já não permaneciam em minha
companhia. Estava só. A nave hialínica abandonava a sua função de
hospedeira e fundia-se ao infinito. Com isso, fui puxado num solavanco
para o vazio, no exato momento em que uma tempestade magnética
violentíssima arrebatava a nave e todo o cosmo, numa profusão de cores
e descargas de luzes ofuscantes...
...Agora me pergunto,
quem sou eu? Olho através de olhos que não são meus. Caminho com
membros que não me pertencem. Respiro um ar que me dá a vida cada vez
que aspiro. Que pensamentos primitivos são esses que desconheço, e
insistem em invadir a minha mente? Que mundo... Que mundo é esse? Dois
planetas geminados, fundidos pelas bordas! A cabeça se volta para o
lado e percebo através dos olhos, outros seres. Não são "Viajantes”,
nem “Infiltrantes”, nem “Glóbulus”! Caminham sobre dois membros,
possuem mais dois apêndices, um em cada lado do corpo. São altos e com
uma pele muito alva... Olho para mim. Sou idêntico a eles!!! Será que
cheguei a Xython? Assim? Deste modo tão abrupto? Nunca me aconteceu
isso... sempre tive o controle da situação. Alguns seres se aproximam
de mim com o ar hostil. O que será que está acontecendo? Me empurram
para perto de um imenso buraco cavado no chão. Entoam uma espécie de
música ritualística... primitiva.... gritam, falam em um língua
sincopada e estranha. De repente ficam em silêncio olhando para
adiante, para uma linha divisória invisível entre os dois planetas. E
vejo surgir uma claridade prateada... uma luz tão brilhante, radiante,
límpida, cristalina, como nunca havia visto ir crescendo a cada
momento, e vir invadindo cada pedaço de terra a minha frente, mostrando
ao longe um oceano com águas de um azul profundo, em contraste com as
matas verdejantes do outro lado, e se perdendo no horizonte.
Repica novamente a
musica, e todas aquelas criaturas começam a dançar num ritmo cada vez
mais tresloucado, frenético. Eu tenho que escapar! Estou sendo levado
em sacrifício. Mas já? Porque? Tenho que sair de dentro daquele ser,
mas a minha vontade não prevalece. Tento me arrojar para frente, uma,
duas, três, quatro vezes... e nada. Apenas faço o corpo sentir dor, se
machucando ao rolar pelo chão... Estou aprisionado! Sei que existem
“Viajantes”! Ali... em cada ser presente deve existir um “infiltrante”,
mas porque eles não aparecem? Porque não os percebo? Vejo apenas
olhares injetados de loucura vindo em minha direção. Será que também
são prisioneiros como eu, daquele planeta?
Um tremor de terra os
paralisam. Se entreolham perplexos, no mesmo instante em que se abrem
imensas fendas no solo, engolindo-os. E ao mesmo tempo, daquele imenso
buraco negro a minha frente, sobe um rugido animalesco e ensurdecedor.
Uma força invisível em forma de vento surge e vai arrancando tudo... E
eu vejo; eu vejo os elementos da natureza revoltados. As lágrimas
correm pelas minhas faces. E eu vejo quando o Incriado, num furor
insano, extirpa do ventre a outra parte do planeta, e irado,
arremessa-o para o espaço.
E de repente, o que
antes não era, agora estava ali, e o que nunca fora, estabelecia a sua
vontade... O firmamento mudou num giro. As estrelas trocaram de lugar,
e muitas se afastavam numa corrida para os confins do universo, para
pontos distantes, longínquos...
Depois, percebo que
uma plataforma se eleva abaixo de mim, e vislumbro águas barrentas
invadindo, cobrindo tudo... silenciosamente. Me sinto isolado. Mas a
solidão é momentânea, pois a minha sombra é encoberta por uma forma
disforme, que se aproxima sorrateiramente por detrás de mim. Vou me
virando lentamente, meu corpo começa a transpirar, sinto o medo
aflorando do meu peito. Não consigo respirar, a minha voz não sai...
não consigo gritar... o pavor é imenso. Sinto um toque frio e gélido na
minha pele. Fico paralisado. Eu preciso fugir! Eu preciso respirar! Eu
preciso gritar: SOCOOOOOORRO!
© John
Dekowes 2002-2003.
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