O 4º Cavaleiro

Aimberê Filho

Na mesa, já estávamos eu e o Feioso. Feioso estava daquele jeito dele, pastoso, mais calmo que monge Zen. Eu, tenso, batia os dedos na mesa, suava pela jaqueta de couro, fumava.

— Garoto... que adianta ficar assim... Já, já ele chega. — disse-me o Feioso encostando, com cuidado, as costas na parede do bar.

— Não é isso. — falei irritado — É que não sei o que Gordo quer da gente. Na certa é coisa para se preocupar.

— Deixa o cara chegar... aí a gente vai saber.

O bar estava escuro, mas eu não demorei a divisar a figura do Gordo vindo em nossa direção. Era um sujeito enorme, com uns quase dois metros, e um diâmetro considerável. Fazia para mais de dez anos que eu não o via e, se não fossem as circunstâncias da reunião, eu era capaz de lhe dar um abraço.

— Acorda, Feioso. Ele chegou.

Quando Gordo sentou-se e a cadeira fremiu, houve uma expectativa. Depois tudo se acalmou e vimos que, ao menos quanto à mobília, aquele quifofo prestava.

— Então? — falou Feioso, dando aquele sorriso que o acompanhava desde que começara a vagar pelo mundo — Como vai essa gordura?

— E essa cara feia? — respondeu-lhe Gordo sem sorrir.

— Ha-ha. — fez Feioso, e calou-se.

— Já estávamos achando que você não vinha. — falei por fim.

— Se eu não viesse — disse Gordo ajeitando a camiseta preta apertada que mal cobria a tatuagem no braço — então todos poderíamos dormir tranqüilos esta noite.

— Que é que está se passando? — indagou Feioso — E por que você não convidou o Queixada?

Gordo sorriu. Era um escarninho.

— Acha que eu o devia ter convidado? O Queixada?

— E por que não? — insistiu Feioso — Ele ainda faz parte do grupo... Ou não?

— Não. – sentenciou Gordo levantando-se.

Quando voltou a se sentar, trazia três cervejas

— Vocês não vão beber?

— Eu não. — disse Feioso.

— O que há com o Queixada, Gordo? — eu perguntei a meia voz, bebericando de leve — Ele aprontou mais uma? Está precisando de nós?

— O Queixada? Precisando de nós? — fez Gordo, e riu-se na minha cara, soltando um bafo etílico — Você continua o mesmo, Garoto. Então ainda não está sabendo?

Dirigiu essa pergunta também ao Feioso. Mas ficamos os dois sem saber se falávamos a verdade ou não.

Por fim, eu disse:

— Conte o que há, Gordo.

O Gordo contou.

 

O Gordo demorou exatas sete garrafas para nos contar tudo. Quando acabou, seus olhos estavam vermelhos, mas ele conservava um ar mais sóbrio que qualquer um de nós.

— Então o Queixada subiu na vida... E agora quer nos pegar... — murmurou do seu canto o Feioso. Tentava dar um tom de graça à questão, mas saiu mau, muito mau.

— Quem esperaria por uma coisa dessas... — comentei acendendo outro cigarro.

— Eu, eu esperava! — bradou o Gordo com os olhos vermelhos — Mas que adiantava ficar dizendo? Talvez você até concordasse comigo, Garoto, mas o que podíamos fazer?

Eu assenti em silêncio. Feioso disse, enquanto se levantava para ir ao banheiro:

— E tudo por que nós judiávamos do infeliz. Fazíamos umas piadas, uma coisa sem importância...

— Sem importância para nós. — murmurou o Gordo mais para consigo, depois que o Feioso saiu. Então para mim, sombriamente:

— Você está tremendo. — É o frio. — falei. De fato, minhas mãos pareciam pertencer a um doente de Parkinson.

— Não. — retrucou o Gordo — É o medo.

— E não é para estar? — eu explodi — Agora a pouco eu pensei ver o Queixada nessa cadeira vazia, bem aqui, nesta cadeira...! Veja se não é para estar com medo?

O Gordo assentiu. Coçou a barba. Ele tinha cultivado a barba nesses dez últimos anos.

— Olha. — disse depois de um tempo — A gente pode se livrar dessa. Mas só se fizermos juntos. Os dois.

— Como assim? O Feioso...

— O Feioso — disse o Gordo — vai morrer.

 

— E aí? Falando de mim? — disse o Feioso voltando a se sentar. A braguilha e o sorriso entreabertos.

— Pode apostar. — disse o Gordo e calou-se.

— Que há com você? — indagou Feioso, o sorriso sumindo-se.

— É que eu estava reparando como você continua o mesmo. De todos, foi o que menos mudou.

— Você também não mudou nada, saco de banha. Só aumentou o diâmetro da barriga.

— É. E você ainda está com essa mesma cara mal-dormida.

— É no que dá trabalhar duro.

O Gordo riu. Mas era um riso triste.

— Você, dando duro? Me conte quem te empregou para esse absurdo.

Pensei ver um sorriso de orgulho subindo no lábio esquerdo de Feioso quando disse:

— Ninguém me emprega. Trabalho por conta própria. Tenho uma pequena distribuidora...

— Ah, entendo... Escutem, vamos lá para fora, está bem? — convidou o Gordo levantando-se.

— Mas está um frio danado lá fora. — tremi eu.

— Já te disse que teu frio é medo, Garoto. — disse o Gordo. — E além do mais, lá fora não vai ter ninguém para ouvir a gente.

— Está bem. — falei acompanhando-o. — Você vem, Feioso?

— Eu ainda não sei se quero pegar aquele frio todo, está bem? Já você — ele apontou para o Gordo — pode ficar até pelado que não sente nada, com essa capa de gordura toda te cobrindo. Parece um presunto.

Mas levantou-se.

 

Lá fora estava frio e muito escuro. A rua estava vazia e, longe, só muito longe, nós podíamos ouvir o pio agourento das corujas.

— O que aconteceu com os postes? — indagou Feioso quando se viu naquele breu todo. Era a primeira vez que o via abrir realmente os olhos e, acreditem, ele sabia fazê-lo muito bem.

— Se abaixa, Garoto.

Eu ouvi o tiro e vi que Feioso desabava no chão frio como um saco de ossos. Então o Gordo falou alto, para um céu sem lua e sem deus:

— Quem é o presunto agora, seu verme?

De posse das chaves do carro de Feioso, partimos.

No caminho, Gordo explicou-me:

— Eu sabia que Feioso já havia conversado com o Queixada. Isso aconteceu há cerca de uns dois meses. Foi depois dessa conversa que ele conseguiu o dinheiro que precisava para montar a sua distribuidora. Compreende?

Eu acenei que sim e Gordo continuou:

— Muito bem. Ora, era coincidência demais que o Feioso tivesse conseguido esse dinheiro logo depois do encontro com o Queixada. E também era ingenuidade demais de minha parte acreditar que o Queixada não queria propor um negócio ao Feioso quando o chamou. É claro que queria. E o negócio eram as nossas cabeças.

Eu estremeci. O Gordo riu:

— É, mas não aconteceu, aí está. Fomos mais espertos que ele, Garoto. Sabe, eu fico imaginando...

— O quê, Gordo?

— Você se lembra de como nós nos autodenominávamos há dez anos? De como gostávamos de ser conhecidos?

— Os Quatro Cavaleiros?

— Exatamente! — os olhos de Gordo brilharam e não era por causa do álcool. — Os Quatro Cavaleiros! E você se lembra... se lembra de quem era cada um?

— É claro que sim. — disse eu entrando no tom que Gordo dava à conversa — Você, naturalmente, era a Fome...

— E como poderia deixar de ser? — ele riu, remexendo todo o corpanzil. — Mas a Fome de Justiça, compreenda-me. Já você era a...

— A Guerra.

— Sempre lutando consigo mesmo... Mas também sempre indefinido quanto a quem atacar...

— Eu cresci, Gordo. — e completei: — Agora... agora há uma garota...

— Eu compreendo... Sim... Compreendo... — aquiesceu Gordo, olhando para a estrada.

— Já o Feioso era a Morte... — continuei.

— E que agora descanse no Inferno! — falou o Gordo fazendo um sinal da cruz com o dedo médio.

Nós rimos até as lágrimas.

— ... E o Queixada a Peste. — eu completei.

Gordo então ficou sério. Sem desviar os olhos da estrada, disse:

— Sim... Mas até para a Peste há uma vacina.

Eu acho que o Gordo achava que nós éramos a tal vacina. Confesso que aquilo me encheu de orgulho no momento, mas depois senti um certo desconforto. Imaginei o que deveria acontecer conosco dali a algumas horas e desejei não ter entrado naquela história.

Nós paramos o carro de Feioso bem perto dum barranco. Tiramos Feioso do porta-malas, colocamos ele no banco do motorista, demos a partida e um último adeus. Feioso caiu lá embaixo e depois pegou fogo. Havia chegado ao inferno, afinal.

Quanto ao Gordo e a mim, limpamos nossas roupas como pudemos e caminhamos um pouco pela estrada até encontrarmos uma estalagenzinha que pudesse nos servir de abrigo. O nome do estabelecimento era acolhedor:

— “Estalagem do Rei”! É assim que vamos dormir esta noite, Garoto! Como reis! — falou Gordo com bom humor.

O dono da hospedaria entretanto, não parecia muito versado nas artes da realeza. Era um velho de cabelo ralo na cabeça e dentes podres na boca. Fazia questão que pagássemos adiantado.

— Sem problema, amizade. — fez o Gordo, tirando a carteira de Feioso do bolso e pagando com dinheiro vivo.

Foi só lá em cima que Gordo demonstrou alguma coisa do seu pesar. Na carteira de Feioso havia uma foto. Datava de dez anos.

— Eu ficava mais jovem sem barba... — disse Gordo para si, e depois: – Cacete, eu já era enorme naquela época.

— E Feioso, extremamente feio! — completei.

— Você era um moleque. — falou Gordo olhando com certa ternura para o garoto tímido de camiseta, tênis e espinhas no rosto.

— Mas onde está o Queixada? — eu indaguei.

— Aqui atrás, veja. — Gordo mostrou-me uma figura que era mais uma sombra — Sempre foi assim, sempre por trás de tudo, mediocremente.

— É, mas ele subiu...

— Subiu! — Gordo levantou-se da cama, olhou para as estrelas pela única janelinha do quarto. Falou, alto:

— É um javali, um animal carnicento. Faz o que tem que fazer, passa por cima de quem tiver que passar. Nunca nos amou. E agora que tem a chance, quer nos matar. E por que? Porque não o respeitávamos, é isso. Porque víamos como ele realmente era, enquanto os outros... — ele tomou fôlego, inspirou o ar das estrelas: — ... diziam que era tímido, chamavam-no de pobrezinho, porque era gago. Gago!

Gordo arfava. Esperei que se acalmasse para dizer:

— E qual é o plano?

— O plano — respondeu o Gordo colocando a mão direita no meu ombro esquerdo — é que você vai me trair.

Era mesmo um plano bom. No dia seguinte mesmo eu fui até o Quartel-General do Queixada, que ficava umas boas duas horas dali. A idéia era jurar lealdade ao Imperador e, para prová-la, entregar a cabeça do Gordo.

Eu executei o plano ao pé da letra, exceto por um detalhe. Logo à entrada perguntei, sem cerimônias:

— Eu quero falar com o Queixada.

Contei para o Queixada exatamente do lugar em que estava hospedado o Gordo, da pensãozinha perdida numa estrada deserta... tudo. Ele deu aquele sorriso horrendo, a mandíbula a protuberar ante o resto do rosto, e foi dar umas ordens. Logo que os homens do Queixada deixaram a mansão do Senhor, eu entrei em contato com Gordo.

— Então?

— Estão indo para aí. Faça como o combinado que a casa está desprotegida.

— Facilite minha entrada, Certo?

— Certo.

Eu facilitei a entrada do Gordo. Deixei deliberadamente o portão dos fundos escancarado e, acredito, não havia ninguém no hall de entrada quando ele chegou.

Creio também que subiu as escadas sem nenhuma dificuldade e, quando finalmente abriu a porta do único quarto em que ouviu vozes...

— Ah, então você está aí...

Queixada estava sentado numa poltrona. Eu estava numa cadeira próxima. Ambos levantamo-nos quando Gordo entrou. Segurando o revólver, ele disse:

— Se abaixa, Garoto.

Mas dessa vez não foi preciso abaixar-me. Duas sombras imensas surgiram da escuridão e agarraram Gordo, que deixou cair a arma. Ele ainda teve tempo de chutá-la para mim, e gritar:

— Atire, Garoto! Não deixe de atirar!

Eu peguei lentamente a arma do chão e, palavra, senti como se estivesse num daqueles filmes de ação em que as coisas se desenvolvem em câmara lenta. Somente me lembro do Queixada gaguejando:

— F-fa-ça o q-que-que ele d-diz, Garoto. A-a-tire.

Eu então mirei bem no coração, e atirei.

Gordo caiu estrebuchando muito no chão. Não sei que olhar foi aquele que me lançou quando se deu conta. Um misto de muitas coisas juntas e alguma saudade, também. Eu não sei. Saí meio zonzo, mas o fato é que havia cumprido as ordens que me haviam sido dadas. Nada mais. Eu agora sabia quem era o inimigo e não vacilara. Eu cresci, Gordo.

Quando já descia as escadas, ouvi o Queixada gaguejar, lá de cima:

— P-parabéns, s-soldado. J-já é um Ho-homem.

Não sorri. A vida era mesmo uma merda. Era uma merda que o Gordo tivesse morrido achando que o Feioso o tinha traído, enquanto ele simplesmente se negara a entregar a nossa cabeça e começara a trabalhar honestamente. Era uma merda porque fazia garotos como eu se sujarem e se sujeitarem só para ganhar uns trocados e não morrer sem alcançar a puberdade e saber o que era a vida... e uma mulher.

Não. A vida não era uma merda. Era uma GUERRA.

Minhas únicas duas compensações foram: primeiro, saber que eu não menti quando disse que, em outras circunstâncias, teria abraçado o Gordo quando o vi no bar, aquela noite; segundo, foi pensar que Gordo jamais deixaria os vermes passarem fome.

  
© Aimberê Filho 2003.

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