Rodovia Km 313

Waldick Alan de Almeida Garrett

 

Da negritude da imensidão salpicavam diminutos pontos luminosos no céu, mitigados por uma densa camada cinzenta de nuvens. Confundiam-se, no seu limite horizontal, com as ofuscantes luzes que se aproximavam em sentido contrário.

A rodovia federal que acessava o litoral era comumente utilizada por mim... não saberia contabilizar quantas vezes por ali transitara.

Nesta noite, anormalmente tranquila, sentia-me excessivamente cansado. Vislumbrava, com os olhos embaçados, a pista duplicada, de sentido duplo e, momentaneamente, a imagem divergia em duas. Paulatinamente, convergia novamente em uma.

Nestes momentos, apressava-me em regular a potência do ar-condicionado para níveis menores, a fim de manter-me frígido e, conseqüentemente, acordado ao volante.

Uma canção típica dos anos oitenta irrompeu através do rádio, fazendo-me lembrar de dois velhos amigos da juventude. Da época em que nós nos reuníamos para desenhar e ouvir novos álbuns de grupos musicais, hoje inumados e substituídos pela tecnologia digital e pela evidente falta de talento da grande maioria dos novatos artistas.

— Maldita luz alta! - resmunguei para mim mesmo, ao cruzar com um veículo que mantinha os faróis altos ligados, além de outro par auxiliar, os quais passaram ofuscando minha visão cansada...

Uma fina e dispersa garoa passou a manchar o pára-brisa do carro, distorcendo as poucas luzes às margens da pista. Acionei o limpador e, por um momento, a palheta engordurada encobriu a paisagem soturna exposta na área envidraçada.

Em seguida, uma luz emergiu inopinadamente, ferindo meus olhos e meus ouvidos, ao emitir um estrondoso som de buzina. Em um ato reflexo, torci o volante rispidamente para a direita, ingressando no acostamento, e o som findou-se com um eco irregular em meus tímpanos. Por um segundo, perdi a razão e o controle do veículo, mas, em seguida, estava novamente na rodovia. Não saberia explicar como acabara de escapar de um provável acidente, por simples distração.

Uma anômala névoa desprendia-se da pista, serpenteando e levitando diante do veículo.

Prossegui o itinerário normalmente, apesar do Mal de Parkinson ter assumido o controle momentâneo de minhas pernas. Uma gélida sensação surgiu, como se tivesse ingerido uma fôrma completa de gelo, que passava a dissolver em meu estômago.

O céu foi toldado negra e completamente, tornando-se sugestionável, pelo menos em minha imaginação. A garoa se adensou e foi logo substituída por um torrencial aguaceiro.

Senti-me confortado, pois sempre admirei boas tempestades. Alguns relâmpagos descortinavam os detalhes do painel do veículo, enquanto me mantinha em velocidade compatível com a segurança.

Próximo ao quilômetro 320, observei que a pista continuava duplicada, porém, esta passou a ter sentido único.

Em determinado instante, meus olhos pareceram trair-me.

Julguei ter visto, à margem da pista, uma silhueta humana estagnada, em vestimentas brancas. Aquilo me incomodou por alguns instantes, entretanto, tentei ordenar os pensamentos no sentido de despertar-me para a viagem, e notei que a rodovia estava completamente vazia naquele trecho.

A estação de canções leves foi imergindo em ruídos e tornou-se insuportável. Esgueirei-me para alcançar um porta-cds debaixo do banco lateral e, ao voltar de posse dele, o veículo ingressou novamente no acostamento.

Um intenso terror banhou-me os sentidos... não pelo fato de ter perdido o controle do automóvel, mas pela cena que presenciei. Não saberia explicar ao certo, mas foi tão nítida quanto o horário digital que, segundos antes, observei no painel: 02:15 horas. Uma adolescente de cabelos compridos, lisos e negros, anormalmente pálida, mantinha-se inerte ao lado direito da rodovia. O pior surgiu em seguida: ao fitar seu rosto, não consegui identificar o seu nariz nem a sua boca, mas tão somente seus olhos, que talvez, por reflexo do farol, tivessem sido distorcidos em tamanho e negritude.

Uma indagação que surgiu, sem resposta coerente, era o fato de não tê-la atropelado, pois transitei descontroladamente pelo local onde ela permanecera. Fui então internalizado por uma horrível sensação de desconforto, que me causou uma angústia quase irresistível.

Olhei freneticamente pelo espelho, mas foi inócuo... a estrada sumia às minhas costas, imergindo na escuridão.

Questionei-me sobre aquela imagem lúgubre e, em seguida, sobre meu cansaço. Por fim, a respeito de minha sanidade... não constituí uma conclusão lógica sequer.

As curvas, beirando as montanhas da serra do mar, tornavam-se escarpadas. Olhos demoníacos pareciam espreitar ao longo da pista, mas, em seguida, eram desvendados pela razão: não passavam de catadióptricos.

Ao ingressar numa curta e singular reta percebi, novamente à direita, a imagem da mesma estranha jovem, vestida com uma longa camisola branca e descalça.

Prossegui e, ao alcançar nova curva, acentuada à esquerda, algo me retirou completamente a razão: naquele trecho onde ela permanecia havia um despenhadeiro à margem direita, protegido por uma divisória metálica... ocorre que a misteriosa moça encontrava-se justamente além da divisória, como se flutuasse no espaço, que teria, pelo menos, uns sessenta metros de altura.

— Não é possível! — suspirei intrigado.

Uma obsessão pela margem direita da pista passou a invadir-me. Ultrapassei o quilômetro 365 e nada mais observei de atípico.

Fixando a visão em frente e, com os músculos retesados, principiei a experimentar um estranho desconforto, misturado a uma tênue aflição. Em seguida, percebi que algo se movia na janela à minha esquerda. Virei meus olhos de soslaio e presenciei uma visão fantástica: a bizarra imagem — e assim poderia caracterizá-la, pois a observava em todos os seus pavorosos detalhes — estava com sua face estampada na janela, não como uma imagem em um tubo de televisão, mas de forma a permanecer do lado de fora do veículo, sinistramente, fixando seus enormes olhos negros e sem expressão em mim.

Os braços estendidos ao longo do corpo causavam arrepios em qualquer ser humano racional, pois se arrastavam pela pista. Não reparei se a imagem suspendia-se ou movia-se de forma inominada... atentei somente ao fato de que me deslocava a, aproximadamente, oitenta quilômetros por hora e os cabelos negros da assombração mantinham-se inertes. Uivei descontroladamente de terror, enquanto a situação perdurou... foram três segundos... os piores da minha vida.

Guinei o volante para a direita e o veículo derrapou, abalroando a divisória de metal que agora existia somente para margear a pista, pois não havia despenhadeiros naquele local.

Parei em seguida.

O farol direito foi danificado e a porta daquele mesmo lado não mais abria.

Senti o hálito frio da brisa exterior ao desembarcar do veículo. O silêncio tornara-se absoluto.

Sentei à beira da rodovia, fitando o veículo que expelia um tênue vapor.

Olhei à direita e à esquerda, e só vislumbrei escuridão.

A cerração piorou gradativamente, dominando completamente a via.

Permaneci ali por alguns minutos, remoendo todos os eventos ocorridos naquela noite.

Na névoa, percebi que algo movia-se... aproximava-se pelo centro da pista, no mesmo sentido em que me deslocava antes do sinistro.

Era ela... arrastando seus anormais braços pelo asfalto e flutuando diabolicamente em sua majestosa, translúcida e longa camisola ... de imediato, uma angústia me apossou, como outrora... um sentimento aflitivo aumentava gradativamente, conforme ela aproximava-se.

— QUEM DIABOS É VOCÊ? — bradei fortemente, com desespero na voz.

Sem obter resposta, a imagem chegou a, pelo menos, uns cinco metros de mim. Sua face era tão anormal que, sem poder explicar como, meu espírito foi solapado pela sua demoníaca fisionomia, e não pude encará-la.

— O que você quer? — perguntei quase sussurrando, com o rosto voltado para o lado e para baixo. Sabia que ela me ouvira.

Uma gélida sensação apossou-se de mim. Olhei de revés e percebi, horrorizado, que a tétrica imagem havia agarrado minha mão, com seus três dedos e longas garras.

Um calafrio percorreu-me a espinha, de baixo para cima. Em seguida, puxou-me em sentido contrário, e comecei a caminhar... todavia, em segundos, já estava flutuando.

Em meio à névoa que passava violentamente por mim, o espectro flutuava à minha frente, quase sumindo, talvez a três metros de distância, por causa de seus longos braços, e segurando minha mão. Quase engolido pela névoa, creio que atingimos, pelo menos, cem quilômetros por hora.

A velocidade foi diminuindo e passei a encontrar o solo com meus pés. Em tropéis de passos cambaleei, até estagnar na margem onde outrora ela ficara.

Visualizei, de imediato, a placa que indicava "Km 313"... uma estranha sensação fez-me cair sobre as pernas e várias imagens imergiram em minha mente.
Compreendi que o momento em que desviei a grande luz ofuscante, evitando um acidente frontal com um caminhão, fez despertar o espectro, que aguardava inerte para alimentar-se de minha alma.

Ela era o mal... puro e simples. Alimentava-se de almas, causando a angústia e a aflição. Precisava de uma alma para acomodar-se, novamente, no quilômetro 313. Esse era o destino de alguns infortunados e solitários, fadados a tornarem-se presas nos longos braços da mensageira... a mensageira do inferno.

Aventurei-me a pensar numa alternativa... um meio de fuga, mas todas pareciam incertas... improváveis... e de risco.

Subitamente, seu longo braço girou, cortando o ar, e sua mão espalmou minhas costas, jogando-me na pista da esquerda. Nesse entretempo, uma luz irrompeu no horizonte próximo e, ao levantar-me, percebi que seria impossível retornar ao acostamento. Cerrei os olhos, colocando as mãos sobre o rosto, aguardando a colisão, quando ouvi o arrastar de pneus, misturado com um breve silvo e seguido de um enorme estrondo, findando-se em sons de metais contorcendo-se e vidros espedaçando-se.

O espectro fitou-me por alguns segundos, parecendo indeciso, e então deslizou em direção ao sinistro.

Aproximou-se do que sobrou da cabine do veículo, que se encontrava sem porta, pois esta fora arrancada pela colisão da lateral com a base da montanha à esquerda, e, curvando-se acima do suposto cadáver, passou seus longos braços em volta do corpo, como um bizarro polvo, e prendeu o espírito da vítima... isso mesmo, o espírito.

Não era suscetível à carne... ao aspecto físico.

Os braços ingressaram no corpo do acidentado e sumiram no seu interior, sem ferí-lo. Logo, uma silhueta de luz apresentava-se presa nas garras diabólicas do ser, que a trouxe para si e incorporou ao seu próprio corpo.

Fiquei ali, paralisado e espavorido... não conseguia comandar minhas pernas, nem meu cérebro... perguntava-me se estava sonhando ou teria enlouquecido... mas tudo parecia muito nítido e real.

A criatura retornou em minha direção, estagnando por alguns segundos, e o sentimento de angústia apossou-me fortemente mais uma vez... então afastou-se e sumiu, lentamente, em frente à placa do quilômetro 313.

Depois de algum tempo, compreendi que não poderia mais transitar por aquela rodovia... não questionem como cheguei ao hospital litorâneo... não me recordo... ou criei um bloqueio mental pelo trauma presenciado...importante foi entender que sou uma pessoa privilegiada: aceitei a religião de minha esposa, a que tanto relutei, e me apeguei às crenças e estudos espirituais. Ainda não sei se escaparei dos quilômetros 313 existentes por aí. Tentarei, pelo menos, adiar. O problema é que, por vezes, ainda sinto uma forte angústia e aflição e, em seguida, alguém próximo falece.  

O AUTOR

Waldick Alan de Almeida Garrett/Curitiba/PR

Oficial da PMPR, professor, bacharel em Direito e co-autor da obra técnico-jurídica "Prática em Processos e Procedimentos Administrativos – Sindicância e Inquérito Policial Militar", lançada pela Editora Juruá, em 2003.

Pertence a Galeria de Honra da Ponto de Vista Literatura, do Rio de Janeiro, com o Prêmio São Jorge de Literatura.

Foi indicado a receber a Comenda de Mérito Cultural da Ordem da Imperatriz Teresa Cristina, pelo Supremo Conselho Internacional de Honrarias e Méritos Literários, de São Paulo.

Teve seu Conto intitulado "O Canto Esquerdo", entre os dez melhores do país, no ano de 2003, e "A Fotografia" exposto na amostra de artes atinente ao aniversário de 149 anos de PMPR.

Participou da vigésima edição da "RPV - Revista Ponto de Vista", no ano de 2004, com a composição que logrou segundo lugar em um concurso nacional, denominada "Incontestável Propósito".

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