Os Caminhos da ficção científica francesa – Jean-Claude Dunyach
Tradução Marco A. M. Bourguignon
[A] ficção científica francesa tem um glorioso passado (lembram-se de Júlio Verne?) e, esperamos um futuro brilhante. Mas a atual situação é um pouco mais complexa e de difícil compreensão. Especialmente, quando se tenta avaliá-la comparando com a ficção científica norte-americana —ou Anglo-saxônica. A definição de ficção científica não é exatamente a mesma em ambos os lados do Atlântico. Ela é frequentemente confundia com o Sci-Fi dos Estados Unidos. (Jornadas nas Estrelas, series de fantasias juvenis e universos compartilhados, para citar alguns exemplos comerciais), enquanto a maior parte dos autores franceses a considera como uma “literatura maior”. “Disney” versos “O Louvre”, se entenderam o que quero dizer. Claro que, ambas as formulações são muito estreitas para serem completamente verdadeiras, mas eles não são completamente falsos. Vejamos o motivo:
O pano de fundo cultura
Primeiro, temos que entender que a França — e, na realidade, a maior parte da Europa — tem um fundo cultural distinto e a ficção científica não tem aqui o mesmo papel que no mundo dos falantes da língua inglesa. A TV francesa, por exemplo, não tem interesse na ficção científica. As mini-séries francesas são baseadas nos romances do século VIII e XIX (o que não é tão ruim como podem pensar, embora sejam fracos de efeitos especiais e sabres de luz — e Depardieu tem sempre o papel principal). As famosas séries de televisão como Jornada nas Estrelas, Babylon 5, Millenium e Doctor Who são quase ignoradas na França. Arquivo X foi um enorme sucesso, mas chegou com um ano de atraso em relação aos Estados Unidos, muitos detalhes do filme não foram compreendidos pela maioria de nós.
Nem sequer temos o equivalente dos quadrinhos norte-americanos (comics). Nada de Batman, X-Men ou Homem-aranha. Nenhum universo compartilhado onde Judge Dredd se junta ao Punisher para lutar contra os vilões… Nada igual ao Sandman — que é ruim. Mas temos toneladas de quadrinhos de ficção científica, com bastantes artistas famosos, de Moebius a Caza, Bilal, Bourgeon e Mézières (que trabalhou com Besson e foi a inspiração de muitas série dos Estados Unidos, como Babylon 5) e por muitos novatos. Os cenários são bastante elaborados e complexos, e são considerados como objetos culturais aceitáveis. Mas um álbum de história em quadrinhos tem o preço acima de 10 dolares. Os pais podem comprá-los, mas os filhos não.
E se você for um cineasta famoso e quiser fazer um filme de ficção científica (Luc Besson, por exemplo, ou Jeunet), será forçado a trabalhar com Hollywood. Parece que não há dinheiro disponível para projetos de FC no cinema francês, ainda que esta situação possa mudar no futuro próximo.
Portanto, o que chamamos de FC na França é a “FC escrita”. O fosso cultural entre os livros de FC Francês e os seus equivalentes visuais vindos do outro lado do Atlântico é bastante grande.
Uma breve jornada na história
A FC francesa foi quase morta pela Primeira Guerra Mundial e só começou a sua ressurreição como um movimento no final da década de 50. Uns poucos livros de antecipação foram publicados entre os períodos, mas nenhum com o selo de FC — por exemplo, O Planeta dos Macacos ou A Viagem Imprudente.
Durante a década de 60 e o início dos anos 70, muitos autores importantes dos Estados Unidos ou da Grã-Bretanha foram publicados regularmente na França. Houve muitas diferentes impressões – de livros de bolsos às encadernações luxuosas – completamente dedicadas a FC estrangeira. Em paralelo, uma impressão popular, chamada de Fleuve Noir Anticipation se especializou em pequenos romances – equivalente francês dos pulps – de autores locais. Nesta época, o público considerava que os autores franceses eram meras cópias dos seus competidores anglo-americanos.
Esta situação evoluiu um pouco nos meados dos anos 70, quando alguns autores franceses — Michel Jeur e Philippe Curval — foram publicados em antologias famosas como a Ailleurs & Demais (em outro lugar e amanhã). Estes livros não eram apenas excelentes no sentido da tradição anglo-saxônica da FC, eram diferentes. Inspirados por experiências literárias como o Nouveau roman, podiam se considerar o equivalente francês da nova geração britânica.
Neste meio tempo, uma geração mais nova queria usar a FC para questionar a sociedade francesa, tal como ela era. Queriam usar a FC para fazer política. Uma das coleções criadas, neste tempo, chamava-se Ici & Maintenant (Aqui e Agora), como resposta a bem estabelecida Ailleurs & Demain. É interessante dizer que os melhores autores como Jeury ou Curval foram publicados por ambas publicações.
Infelizmente, embora as mensagens expressadas por esta “FC Francesa Política” fossem interessantes, muitos livros – ou contos – desse período foram considerados pelo público como escritos de má qualidade. Em reação, um breve, mas intenso movimento neoformalista chamado de Limite, emergiu no início dos anos 80, do qual faziam parte novos autores como Emmanuel Jouanne, Francis Berthelot e Antonie Volodine. Consideravam a FC como meio de experimentação e adotaram uma atitude pós-moderna perante a escrita. Alguns romances e contos foram publicados independentemente pelos autores, mas a sua primeira antologia comum foi também a última…
Vale ressaltar que a FC francesa não estava interessada no espaço, apesar de alguns “western in space” tenham sido publicados regularmente. As “space opera”, novelas espaciais, eram gênero associado à FC anglo-saxônica.
Por essa altura — em meados dos anos 80 — muitos autores novos apareceram e a FC francesa se vangloriava de incluir mais de quarenta escritores profissionais (profissionais significa, bem entendido, que eram publicados profissionalmente, mas eram muito poucos os que ganhavam dinheiro suficiente para sobreviver. O mercado francês era pequeno, e os livros franceses só raramente eram traduzidos para outras línguas). Uma revista mensal — Fiction —publicava um ou mais contos de autores franceses em todas as suas edições, eram oito a dez novos autores por ano. Antologias regulares abriam-se a histórias francesas e uma antologia especial chamada de Futurs au Présent foi inteiramente dedicada a novos autores, ainda não profissionais. Futurs au Présent revelou Serge Brussolo e Jean-Marc Ligny — dois maiores autores da FC francesa — e foi seguida por Superfuturs, alguns anos mais tarde. Entretanto, a Editions Fleuve Noir publicava aproximadamente sessenta livros franceses por ano. Os novos autores substituíam gradualmente os seus antecessores.
Mas, infelizmente, no fim dos anos oitenta e início dos anos noventa foi caracterizado a maior crise editorial.
Em tempo, a Fiction desapareceu junto com a antologia anual Univers. Muitos editores de FC reduziram suas atividades e a maioria parou de publicar novos autores franceses. A única exceção foi a Fleuve Noir Anticipation — mas somente publicavam trinta livros franceses de FC por ano, enquanto fazia várias tentativas, sem sucesso, de publicarem as séries Jornadas nas Estrelas ou fantasias juvenis. A Fleuve Noir foi quem revelou a maior parte dos novos autores do início dos anos noventa como Ayerdhal e Serge Lehman — para não falar do belga Alain le Bussy, do suíço Wildy Petoud e do canadense Jean-Louis Trudel. A única exceção foi Pierre Bordage, um romancista brilhante que foi descoberto por uma editora regional e alcançou o caminho da fama em pouco mais de um ano.
A situação permaneceu mais ou menos na mesma até 1995, ano em que três revistas de FC foram lançadas quase ao mesmo tempo. A primeira foi a CyberDreams, que procurava ser o equivalente francês da Interzone. Desempenhou um papel importante na revelação da nova geração de autores britânicos e na publicação de várias histórias francesas.
A CyberDreams foi rapidamente acompanhada pela Bifrost e pela Galaxies, (http://www.galaxies-sf.com/accueil/), que saíram no mesmo mês e contribuíram para abrir algum espaço aos novos autores. Cada revista publicou cerca de 30 edições até hoje.
Entretanto, duas antologias de contos franceses foram editadas por autores famosos Genèses, em 1996, editada pelo Ayerdhal, na maior editora francesa J’ai Lu, e Escales sur l’Horizon, editada por Serge Lehman em 1998 (seguida pela Escales 2000, no verão seguinte, da qual fui o encarregado, e por Escales 2001).
Escales sur l’Horizon foi um livro gigantesco com 16 contos e novelas de 16 autores franceses e canadenses. Também contém um prefácio muito importante de Serge Lehman, que pode ser considerado como o manifesto da FC francesa do final do século. Estas duas antologias foram bem recebidas pelo público — ambas foram ganhadoras de prêmios — e agora a imprensa refere-se a nós como os novos garotos-maravilha da FC francesa. Não riam!
De fato, mesmo que a situação esteja melhorando — cada uma das editoras francesas principais estão criando ou reformulando as suas próprias linhas editorias de FC/Fantasia/Gótico e o público parece estar interessado pelo que o futuro lhe reserva (provavelmente um efeito da mudança do novo milênio) — o único modo da FC francesa sobreviver será atravessando as fronteiras e achando leitores fora da Europa.
E então, voltaremos para o espaço — onde tudo começou.
Um bom exemplo dos autores dessa tendência é Laurent Genefort. Um dos nossos garotos-maravilha (tem trinta anos, mas tem mais livros do que idade) e é famoso pela criação de ambientes alienígenas e de planetas estranhos. Escreveu uma série de romances independentes ambientados na galáxia, mas numa galáxia que foi povoada por uma raça muito antiga chamada Vangk. Os Vangk desapareceram, mas deixaram atrás de si uma fantástica coleção de artefatos — de portais que permitem viajar até estrelas distantes até um planeta inteiro transformado numa esfera de Dyson, para onde foram transferidos em massa humanos e outras criaturas para experimentos. É algo que se pode também achar em livros de outros autores europeus — lembramo-nos de Alaister Reynolds e do seu Revelation Space, ou de Juan Miguel Aguilera.
Mas mesmo que muitos autores franceses estejam bem atentos aos ícones culturais e das tendências da ficção científica anglo-americana, os nossos livros têm um sabor diferente. Prove também o nosso vinho…
Temas típicos franceses: arte, carne e ironia
É muito difícil especificar a FC francesa — assumindo que ela é específica, o que acredito que seja. O surrealismo foi provavelmente a maior influência durante a década de 80, bem como o noveau roman e outras experiências literárias, mas isto diz respeito ao modo como escrevemos as nossas histórias, não com os seus temas. E, aqui na Europa, o surrealismo é tão air du temps — parte do pano de fundo — que é difícil não ser influenciado por ele.
Acredito que os dois temas principais da FC francesa, desde o fim da década de 70, são os artistas e os museus do futuro — a última coleção de jovens autores franceses, publicada este mês, também explora esses temas — e a relação com o corpo — a carne encarada como território experimental.
A arte no futuro foi um tema central na década de oitenta e está agora fazendo um retorno sério. É interessante notar que a chamada arte que define o futuro é a forma terrorista de mudar a sociedade — a arte significa um meio de mover as massas e de as controlar — a útlima expressão seria a liberdade contra os estados totalitários. Na publicação recém-lançada Musées, des mondes énigmatiques (Museus, mundos enigmáticos), a maioria das histórias descrevem fugitivos do mundo exterior à procura de refúgio num museu. Alguns são apanhados e destruídos, enquanto outros encontram ajuda de outros refugiados. Não há nenhum caráter de interese pelas artes. O que representa uma possível metáfora da atual FC francesa, o que é bastante assustador.
Quanto no território experimental da carne, o tema está provavelmente ligado ao surrealismo — Dali, por exemplo, é famoso pela sua estátua da Vênus de Milo com gavetas. A FC é considerada como a literatura da metamorfose, brincar com a ideía de recostruir seu corpo artisticamente é uma tendência natural! É bom notar que o corpo reconstruido é feita por razões artísticas e sem usar as biotecnologias ou parafernálias científicas.
Acrescento que a maioria dos escritores de FC franceses não são cientistas — eu sou uma das poucas exceções — nem estão particularmente interessados na ciência (pelo menos ficção científica hard).
Algumas trajetórias particulares
Com excepção dos movimentos literários bem identificados mencionados acima, cujo impacto foi limitado, a FC francesa é composta principalmente de particularidades, cujas trajetórias são bastante diferentes.
Serge Brussolo apareceu no início da década de oitenta e começou a produzir quatro a cinco romances por ano em um estilo muito surrealista. Tornou-se bastante popular e diversificou as suas obras para romances históricos e thrillers, usando vários pseudônimos. Nos seus livros, podemos encontrar gatos albinos vendidos com conjuntos de cores laváveis para que se possa pintá-los do modo que quiser, oceanos substituídos por centenas de milhões de anões que vivem na lama, de mãos para cima, e transportam barcos em troca de comida. Claro que de vez em quando eles se reproduzem e então acontece uma onda de maré de anões que pretendem conquistar novos territórios. Mas a guarda costeira está equipada com metralhadoras…
Quanto aos anos noventa, vamos mencionar:
Ayerdhal — um pseudônimo — é muito famoso por suas novelas espaciais políticas com intrigas complexas e personagens femininas interessantes. Serge Lehman, um estilista com um bom senso de maravilhamento, começou o seu épico « História do Futuro » no início da década de noventa. Pierre Bordage é o nosso especialista em sagas e um autor dos mais vendidos desde a sua primeira trilogia. Richard Canal, que vive em África, tenta unir o mainstream e a FC num futuro dominado por sociedades de aspectos africanas. Roland C. Wagner, que surgiu no início dos anos oitenta, encontra a sua inspiração no rock’n roll e nas descrições humorísticas de sociedades alenégenas — ele ganhou a maioria dos prémios franceses de FC de 1999.
E uma nova geração de autores surgem unindo a FC, a fantasia e o steampunk. David Calvo — cujos livros se situam em algum lugar entre Peter Pan e a banda lunática —, Fabrice Colin, Laurent Kloetzer e muitos, muitos outros.
Os Recém-chegados do mainstream: osmose e imitação
Uma última tendência: parece que a ficção científica está pouco a pouco sendo socialmente aceitável, pelo menos alguns membros da comunidade de ficcionistas de mainstream. Durante os últimos três anos, uma gama de romances relacionados com a FC foram publicados pelas maiores editoras e algumas delas alcançaram o topo das listas dos livros mais vendidos ! Um dos mais recentes — Les Particules Elémentaires (Partículas Elementares), um romance de Michel Houellebecq — foi um sucesso enorme e também um grande escândalo, em parte devido a cenas de sexo explícito. Mas a maioria dos jornalistas que o entrevistaram foram incapazes de compreender que o seu livro era ficção científica e ele foi obrigado a explicar-lhes a FC. Em detalhe.
Ainda bem que não foi forçado a fazer o mesmo com as cenas sexuais!
Publicado em: 25 de setembro de 2005.